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terça-feira, 18 de setembro de 2012

Desabafo


Ontem falava em francês com uma doente sem saber o seu nome. Quando me viu entrar pela porta os seus olhos deslumbraram-se e fui bombardeada de elogios enquanto lhe explicava algo sobre o tratamento que lhe propus. Ao aproximar-me do sofá onde se encontrava levantou-se, pôs-me as mão nos ombros e perguntou-me a minha nacionalidade. No momento seguinte abraçou-me e chorou enquanto falava em português dizendo que também ela era portuguesa e que completara já 50 anos desde o dia em que viu Portugal pela última vez. Dizia ela que Portugal lhe fechou as portas e a Bélgica lhas abriu daí sentir-se mais belga do que portuguesa. Ontem encontrei-me no mesmo espaço que uma geração que emigrou há 50 anos quando Portugal não tinha nada para oferecer, fui ela no momento em que parti para cá e em que Lisboa soube sem palavras o que isso significaria. Agora deixo-me levar, choro em aeroportos mas sorrio muito mais neste país que me tem acolhido do que teria sorrido ao longo dos meses em Portugal, país que amo como nunca vou amar nenhum outro que conheça. Hoje ligo a televisão e vejo homens engravatados sem rosto. É incrível como aguentamos tanto. Deveriam os políticos ser os enfermeiros da nação, cuidando dela, ajudando à sua cura. Não percebo porque optam pela função de assassinos. Hoje sei que a cada 4 horas há um suicídio em Portugal, a taxa de desemprego aumenta a cada segundo, as medidas de austeridade são algo que ultrapassou os limites da compreensão humana há muito tempo, há quem passe fome em Portugal, a "cáritas" não consegue dar resposta aos pedidos de ajuda e apesar de tudo ainda cá estamos, ainda estamos vivos, ainda sobrevivemos. É incrível como ser português é tanto e tão pouco para quem deveria cuidar da nação. Até quando aguentaremos tudo isto que fazem connosco? Até quando?

sábado, 15 de setembro de 2012

O teu aniversário

Hoje é o seu aniversário, o dia em que viu primeira vez o mundo e chorou num grito de vida.Tenho a certeza de que foi um dia importante. Faz hoje anos que nasceu aquela pessoa de quem me orgulho todos os dias. Hoje é o aniversário de um dos militares que passaram além do sofrimento na defesa de uma causa que não era a sua, em nome de uma nação amnésica. O meu pai comemora o seu aniversário e não é um dia feliz para ele,  faz hoje anos também que o vi derramar pela primeira vez uma lágrima e desde então, nos dez anos que se seguiram tudo passou a ser diferente, hoje comemora-se também o décimo primeiro aniversário sobre...nós sabemos. Gostaria de estar lá, na  casa, na nossa casa, hoje em que o meu irmão e a minha mãe também estarão para nos juntarmos à minha mãe e fazermos um almoço com um detalhe especial, não importa qual. A maior prenda que lhe sei oferecer é mostrar-lhe que sou exactamente a filha que ele idealizou. Hoje é o seu aniversário, por isso posso dizer-lhe que se nunca cruzei os braços e virei as costas ao que quer que seja tudo isso tem a ver com o facto de acreditar no mesmo que ele. O meu pai é a pessoa que menos fala na família e a que melhor observa enquanto nós cruzamos sons insuportáveis que variam entre as nossas vozes e objectos que desastradamente deixamos cair nas nossas rotinas diárias. O meu pai ensinou-me o seu olhar, ensinou-me a percebê-lo. Hoje vou telefonar-lhe e ele não irá ler este texto. Talvez a minha mãe o encontre e o chame para ler. No momento em que ele ler não irá dizer nada mas sorrirá e saberá com palavras que o orgulho e o amor que sinto por ele são algo que não me cabe no coração, saberá que desde o primeiro ao último passo da minha vida pensarei nos princípios que ele me ensinou a seguir.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Ausência de mim

Nego-te a ti que me amas pelo simples facto de estares aí. Nego-te a ti porque me enganas quando me julgas superior, quando me enalteces nessa mentira. Não te quero desiludir mas não há razão para me amares. Não há nada em mim que possas apreciar. No fundo da cólera do meu olhar encontrarás um conjunto de estratagemas falhados pela incompetência de os manobrar. Por que me olhas assim? Por que me ofereces presentes. Só te direi que te amo quando alguém me falhar, quando alguém não corresponder à minha manipulação diária. Não te amo e não te quero amar. Tu e eu somos a mesma pessoa, um só num conflito entre hemisférios cerebrais que se opõem e se negam. Tu e eu estamos neste corpo. Não dormimos de noite e não mantemos a vigília de dia tal é o cansaço que do nosso único ser se apoderou. Vem depressa noite escura, vem depressa noite eterna acalmar este vazio que há em mim. Esta ausência de identidade que me vai matando a cada instante de ausência de ti, morte boa, morte justa. Vem depressa, não deixes que a luz te impeça de chegar a este lugar que já não existe. 
        E no dia seguinte ele não era nada, não havia pensamento, não havia sensação, não saberia que algum dia teria existido aqui onde um corpo que se pensa ser o seu repousa inquieto embora inerte. A noite escura chegou sem com ela lhe oferecer a calma prometida pela morte. Agora existe uma ausência de si e de passado. Agora, existe nada. Agora nada é tudo. Agora, só agora.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

terça-feira, 4 de setembro de 2012

As pessoas do Tram


As pessoas no tram não têm expressão, algumas têm um olhar de desaprovação, de desconfiança ou de malícia mas não têm um rosto expressivo. Deixam-se ir no tram como se aquela viagem fosse algo que fizessem obrigadas como um carma repetitivo do qual não poderão nunca libertar-se. As pessoas do tram oscilam quando o tram oscila. As pessoas do tram têm os olhos semi-serrados e não sorriem. As pessoas no tram são sempre as mesmas embora me pareçam possuidoras de rostos cujas feições mudam diariamente. São as mesmas, as pessoas do tram que embarcam a qualquer hora na viagem que são as suas vidas. Eu entro no tram a horas concretas para fazer coisas concretas. Existe um antes e um depois do tram para mim também e nesses momentos sou eu, sou pessoa, penso e faço coisas que os outros não pensam e não fazem porque não são eu. Quando entro no tram sou uma pessoa do tram, sou um rosto desconhecido sem reação, à espera do terminus do tram ao qual chego sozinha como muitas vezes vai acontecendo nas viagens mais importantes como a vida. Se não existisse o tram não existiriam as pessoas do tram que diariamente deixam as suas vidas em suspenso durante estas viagens. Se não existisse o tram, as pessoas do tram seriam as pessoas de outro sítio qualquer na viagem de ida sem destino a que os homens chamaram de vida.